quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O ano do Galo - Memórias num pedaço de plástico espelhado

Num e-mail que troquei recentemente com uma amiga de longa data comentava algo acerca de uma viagem de negócios que me levou, em 2005 (ano do Galo) até à China. Coincidência (ou não - pois dizem que não há coincidências) no dia seguinte encontrei numa das divisões da casa um CD-R onde tinha escrito "Viagem China". Certo que este blogue foi criado para relatar sobretudo as minhas experiências e a minha vida na Polónia mas para variar um pouco vou contar algumas das peripécias com que me deparei nesse outro mundo - a Ásia.



Cai Shen, o deus da prosperidade guarda a entrada de uma empresa em GuangDong


Trabalhei em tempos para uma empresa de abrasivos polaca. Nesse ano os clientes-chave dessa firma começavam a pressionar - na realidade a chantajarem - para se reduzirem urgentemente os preços (naquela altura o patamar exigido situava-se entre os 10% e os 15% passando para 30 a 50% a partir da crise financeira de 2008!) pois alegadamente os chineses começavam a invadir o mercado europeu com produtos semelhantes a um preço "sem concorrência".

A mensagem era clara. Ou se reduzem os preços a curto-prazo ou perdemos uma quota do mercado mas o problema não estava exactamente em reduzir os preços mas sim na debandada dos grandes grupos para o Oriente, nomeadamente para a China. A cada mês corriam boatos que uma grande empresa de cutelaria deslocalizou parte da produção para a Ásia, que um grande cliente alemão tinha despedido a maior parte do pessoal na Alemanha e deslocalizava maquinaria em grandes contentores para a China.
Num espaço de meses planeou-se a abertura de uma filial na China. Ficaria mais tarde localizada em Heshan - a cerca de 200 quilómetros de Hong Kong e não muito longe da nossa ex-colónia de Macau.
 Foram tempos de grande frenesim onde o director geral mal aquecia a cadeira no escritório, em constante "ping-pong" entre a Polónia e a China.

Depois de um aborrecido voo entre Varsóvia e Frankfurt onde apenas serviram um chocolate sem um sorriso a acompanhar e após uma ainda mais aborrecida espera no aeroporto, entrei finalmente no gigantesco Jumbo 747 da Austrian Airlines que demoraria mais de 10 horas até chegar ao seu destino em Shangai. Na Polónia estávamos em Maio, um Maio ainda fresco, com resquícios da neve - agora suja e negra - dos meses anteriores e com o som das gralhas a dizerem-nos que ainda não estamos em meses de calor. A sensação ao passar do ambiente fechado e artificial do avião para o exterior era previsível; um soco de ar quente e húmido no rosto, um tipo de clima que, diga-se em abono da verdade, não tenho saudades e só me fazia mudar de roupa várias vezes ao dia e não querer sair do conforto do ar-condicionado no hotel ou da piscina durante o dia. Sair só à noite e mesmo assim era para transpirar.

O aeroporto de Shangai é moderno e absurdamente gigantesco fazendo o conhecido aeroporto de Frankfurt parecer um velho Mercedes classe S a gasóleo em comparação com um Lexus híbrido. Sinal de que estamos na Ásia é o barulho das pessoas a falarem. Qualquer aeroporto europeu tem o silêncio da Catedral de Notre Dame quando em comparação com o ruído dos aeroportos, ruas e locais públicos chineses, um verdadeiro estádio de futebol. Obviamente que a quantidade e concentração de pessoas também é visivelmente maior - muito maior - que na nossa velha Europa.

Shangai é uma metrópole, uma cidade tão grande e agitada que fez, aos meus olhos, Varsóvia e Lisboa parecem uma pequena cidade. Os táxis foram outra surpresa. O forro do tejadilho do VW Santana em que entrei (famoso no Brasil dos anos 80) era em plástico de alguidar e o motorista fica fechado num pequeno cubículo de plexiglas onde por vezes podemos ver as garrafas onde urinam, tudo para não saírem do carro durante as horas de trabalho.
Do you speak English? Pergunto-lhe. - No, no no... diz-me o motorista ao mesmo tempo que abana vigorosamente o indicador. Mostro-lhe um mapa imprimido que trazia na pasta onde se pode ver o hotel onde quero ficar. O chinês abana a cabeça a confirmar e arranca rapidamente por entre o trânsito intenso de Shangai. Procuro um cinto de segurança mas constato com surpresa que entre a cinzenta napa grossa do banco traseiro não encontro os trincos do cinto e tampouco os próprios, não estão instalados, umas tampinhas plásticas cobrem os locais de fixação dos mesmos - como no Fiat de 1973 que era do meu pai!


Anos de progresso a assistirmos a crash-tests, aos pré-tensores dos cintos de segurança, ao advento do airbag duplo, às barras de protecção nas portas, aos sidebags e airbag de cortina e joelhos, ABS, ESP, EDB para isto... uma pequena viagem a tempos em que andávamos sem cintos de segurança e pouco preocupados se podíamos bater ou ficar inválidos num acidente de viação. Recostei-me feliz por ter um táxi com ar-condicionado e deixei para trás as preocupações ocidentais de acidentologia enquanto apreciava a selva urbana pejada de táxis, scooters, bicicletas, fumo, autocarros e muitos peões nas ruas.

Foi tempo de descansar o mais possível. Não só os efeitos do jet-lag se faziam sentir como no dia seguinte teríamos de estar em Suzhou.

Procurar um restaurante chinês em Suzhou... 

A piada era fácil. Quando surgiu a pergunta onde íamos jantar.

- We can try to find a Chinese restaurant.

Perto do hotel eram vários mas quem escolheu o local de repasto foram os chineses da equipa do SIP (Weiting Town Investment Promotion Center). Esperava-nos à porta do hotel uma van Chrysler Voyager (Dodge na China) azul com os vidros escuros. Um chinês do SIP chamado Kevin (o seu nome ocidentalizado), recém-licenciado, vestido em camisa de Macau e calça de vinco preta (a fazer-me recordar os empregados de um restaurante lá de Famalicão), orientou-nos levando-nos a um enorme restaurante onde nos esperava um sala, reservada só para nós.

Por entre uma conversa banal, que sabia estar viciada à partida pois não havia ainda um interesse real em investir em Suzhou - procedíamos nesse tempo a uma prospecção -  foram-nos servidos vários pratos pois na tradição chinesa de bem comer tem de haver variedade e abundância. Primeira grande diferença para os nossos restaurantes chineses. Existe uma plataforma rotativa na mesa para as pessoas se irem servindo e os guardanapos são servidos embrulhados numa embalagem plástica mantendo o guardanapo húmido, na realidade parecia uma pequena toalha de turco. Por vezes sentamos-nos numa espécie de fosso ao redor da mesa, com umas almofadinhas debaixo das nádegas.


 Nunca me ajeitei com os pauzinhos, falta-me a paciência e o jeito por isso pedi sempre talheres. A comida estava preparada com condimentos e especiarias picantes onde não faltava o "gindungo" ou Piri-Piri que os chineses fizeram questão de nos dizer para não comermos, como se se tratasse de uma espécie de resíduo radioactivo. Valeu a cerveja Tsingtao para apagar o fogo que ardia na boca. 

Kevin, sentado ao meu lado, tentava ter uma conversa paralela comigo para saber melhor o que estávamos ali a fazer e qual a ideia do projecto que tínhamos em mente. Depressa me apercebi que quando se trata de funcionários do governo nem vale a pena perder muito tempo. Dão-se respostas breves e muitos agradecimentos. Ali tudo está planeado para se sacar informações o mais possível e por mostrar trabalho às chefias e cúpulas. A simpatia é sempre proporcional ao investimento e do mesmo modo que os analisamos eles também o fizeram. Num espaço de dois dias, após apresentações multimédia no edifício do SIP, e inúmeras visitas a parques industriais, os chineses aperceberam-se que dos "polacos" não havia nada concreto e a primeira retaliação foi chamarem um táxi assim que pedimos para nos levarem de volta ao hotel, a Dodge Voyager estava repentinamente indisponível. Pensei para os meus botões: "toma lá que já almoçaste".

Naquela pequena cidade de Weiting Town na província de Suzhou (pequena como Braga ou Częstochowa) tudo cresce a olhos vistos e tenho a certeza que o que vi há quatro anos atrás estará a esta hora substancialmente diferente. Os parques industriais feitos em pré-fabricado crescem como cogumelos e ali abundam os empreiteiros e os altos funcionários do estado - a nova classe média-alta chinesa - que vivem nas suas vilas em condomínio fechado, em condições que, em comparação com a maioria dos seus concidadãos, se podem considerar como faustosas.


 Comecei-me a aperceber dos contrastes entre a China rica e a China pobre quando observamos os pormenores. Nas ruas a maior parte das pessoas andam de bicicleta ou a pé, alguns (muitos) de scooters eléctricas e uma minoria de carro. Não é estranho ver pessoas a atravessarem avenidas largas como se estivessem no campo, sem se apercebem do perigo que correm. Da janela do quarto do hotel vi várias vezes os táxis a buzinarem freneticamente para peões aparentemente despreocupados.

Uma outra visita, a um fabricante de cutelaria sino-americano estava agendada para a manhã seguinte. Visita essa que me levaria a espreitar a China rural e finalmente conhecer Hong Kong mas isso será contado noutra ocasião que a prosa já vai longa e não quero entediar os meus leitores...













segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Polónia avulso...

Aproveitando uma pequena caminhada (cerca de 8 km) fui tirando umas fotos de telemóvel a certos pormenores que achei interessantes.




O painel publicitário não se trata de publicidade enganosa. Não. Trata-se mesmo de publicidade imbecil ao Egipto onde, através do slogan płyń ku słońcu (Mergulhe em direcção ao Sol),  somos convidados a mergulhar nas cálidas águas do mediterrâneo, mesmo ali no Cairo, ao lado das pirâmides de Keops, Kefren e Mikerinos. Um destino ideal para quem pretenda fazer mergulho e visitar as galerias submersas do complexo de Gizé, de preferência visitantes de estilo ariano - como os que vemos na imagem. Quando lá estive (se soubesse!) tinha levado os calções e dado um mergulho, estava um calor abrasador e fazia falta algo que refrescasse...




Temos pouco mais de dois anos de vida até à "suprema castanhada monumental" de 2012. 

Os Sumérios já tinham avisado, os Maias elaboraram inclusivamente um complexo calendário que acaba no nosso anno domini de 2012, Nostradamus refere algo de catastrófico nas suas profecias, Edgar Cayce sabia-o, São João descreveu o Armagedão no Apocalipse, os alquimistas, os Rosa-Cruzes e a Maçonaria têm prolixos textos sobre o fim do mundo. A temática escatológica está bem presente nas mais variadas culturas e nas principais religiões mundiais. O planeta vai parar de girar durante três dias e a humanidade vai sofrer. Não tem volta, isto vai tudo para o galheiro!

O que nos espera não se sabe ao certo. Uns dizem que o planeta Terra vai ser destruído por um cometa, outros que a punição de Deus está a chegar, outros que a Era de Aquário tem efeitos na humanidade a partir de 2012 causando uma revolução na consciência colectiva. Ainda há a versão que vamos ser invadidos por uma frota de extraterrestres ou que Jesus de Nazaré retorna e aparecerá num disco voador.

Mas a maior catástrofe tem-se sentido nalguns meios mais conservadores da Polónia. Não só estão prestes a promulgar uma lei que proíbe a ostentação de símbolos religiosos nas escolas (tocando particularmente o catolicismo e as suas tradições) como se atrevem a colocar nas paragens de autocarro o cartaz do filme 2012 com o Cristo Redentor a cair sobre uma multidão de fiéis enquanto um gigantesco tsunami varre a costa do Brasil. Saramago vai gostar de ver este filme!

Aliás o filme, no trend iniciado por O Código de Da Vinci e  por Anjos & Demónios, arrasa - literalmente - com o Vaticano e com o clero católico. Desta vez o Vaticano e as cúpulas da catedral de Roma vão rolar, qual rolo da massa, sobre mais uma multidão de devotos confiantes na salvação em lugares santos.

Trabant 1 Honecker 0 



Como um vagabundo zarolho o pequeno Trabant da imagem espera reparação. O carro ainda anda, vi o bate-chapas a pegar nele. Perguntei-me se o Trabant vai para uma carpintaria pois aquela batidela não amachucou o carro, partiu o guarda-lamas - em cartão prensado.
Sim literalmente partiu o guarda-lamas, os Trabant são conhecidos na Polónia como os Ford Karton (Ford Cartão) por serem construídos num material feito com papel, cola e aglomerado de madeira. Não sofrem do mal da corrosão, como os seus parceiros em chapa, mas sim de caruncho, como qualquer mobília velha.



 Raramente se vêem nos dias de hoje mas ainda continuam a rolar alguns. Rolam livres, numa Europa onde já não existe Erich Honecker e o Muro de Berlim e demasiado lentos para um mundo em que o tempo parece ser sempre pouco e os carros circulam demasiadamente rápido. 





.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Nota de roda-pé (serôdia) sobre os 20 anos da queda do Muro de Berlim

Outros bloguistas já escreveram bons artigos sobre os 20 anos da queda do Muro de Berlim; aqui e aqui...

Hoje em dia pouco resta do muro de Berlim, ficam apenas pedras a relembrarem os transeuntes o local onde outrora se erguia aquilo que muitos chamaram o muro da vergonha.


 Foto: The Guardian UK 


Um bom filme - recomendo-o vivamente - sobre esta questão do fim do comunismo na RDA é o Good Bye Lenin de Wolfgang Becker.











sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Inspecção Periodica Obrigatória e mecânico honesto




Podia ter dado o titulo do tópico "coisas de carros" mas decidi cortar um pouco com a rotina. Como já tinha dito no tópico anterior o Rui Vilela indicou-me um mecânico da sua confiança após andar desesperado à procura de um que fosse apenas uma pessoa correcta e sincera.

Em Famalicão costumava ir com os carros a uma oficina na qual os mecânicos conheciam-me desde criança, vi-os envelhecer, lamentei a morte de um deles - o Sr. Adão - e continuo a desejar que pudesse levar os meus carros ao Sr. Mesquita. Mas aqui na Polónia não há Sr. Mesquita, nem Chico, nem nenhum dos seus mecânicos.

Para mal dos meus pecados não posso pagar reparações a "um bocadinho de cada vez" e nem sequer ter um electricista como o Sr. Jorge que por vezes - em coisas ridículas - nem sequer cobrava. Quando era miúdo era um momento de grande emotividade ver o Sr. Adão a conduzir o nosso Fiat 128 vermelho, havia sempre algo que se estragava ou desafinava e então o meu pai, que de carros apenas os conduzia, levava a máquina à oficina Adão&Mesquita. Nessas voltinhas do "vamos ver o que o carro tem", o Sr. Adão conduzia aquele Sport Coupé como devia ser, a fazerem-se ouvir as duas borboletas do carburador duplo Webber a cantarem alegremente pelas ruas de Famalicão! O carro parecia voar naquelas ruas que ainda eram na sua maioria em paralelo.

Mas ver os dois nos bancos da frente daquele carro é uma memória cada vez mais envolta numa bruma, só eu ainda cá ando. O meu pai deixou-nos há sete anos e o Sr. Adão há seis, o Fiat, depois de ter emigrado, ficou abandonado atrás do prédio onde morava e, de tão enferrujado que estava, foi enfardado numa prensa hidráulica em 2005.

Voltei aos carros italianos, tinha saudades deles, do design diferente, dos manómetros Veglia Borletti, dos espelhos Vitaloni, das jantes Cromadora, da Magnetti Marelli... Durante anos jurei nunca mais comprar um, o 128 havia causado uma relação amor-ódio, eram emoções misturadas com baldes de ferrugem, o inconfundível ronco do motor a par com avarias no distribuidor e nos gigleurs, piões e arranques que acabavam sempre por estragar algo nos tambores ou nos cardans.

 Depois de um carro alemão voltei a um italiano. Devia ter comprado uma Alfa Romeo 156 SW a GPL (se há uns anos me dissessem que um dia gostaria de ter um Alfa ria-me na cara dessa pessoa) mas foi uma Lancia Lybra SW, um carro que usado tem um preço óptimo e que oferece muitas tralhas que em outros carros são extras caríssimos.


  
As estradas polacas tomaram conta dos elementos de suspensão, não há hipóteses de evitar o desgaste prematuro dos silent blocks, dos casquilhos e das ponteiras de direcção. 

A oficina do Sr. Marek é muito simples, a típica oficina com quatro paredes e telhado recheada de ferramentas, peças de automóvel, uma VW pão-de-forma a ser restaurada atirada a um canto e calendários com meninas de mamas ao leu e stilletos. Cheira a óleo, a gasolina queimada e a pó mas ali fazem-se milagres e vemos o tal dizer polak potrafi (um polaco consegue) em todo o seu esplendor.

Se falassem português, tivessem cabelos escuros e sobrancelhas grossas diria estar em Portugal mas na conversa que vou tendo há palavras que não entendo e outras frases compreendo-as tirando-as do contexto, dizem-me uma piada mas sorrio pois não entendi o que queriam dizer, tinha a ver com carros mas não apanhei tudo, por vezes sinto-me como num filme em que de repente se esquecem de colocar as legendas.



Um Mazda acidentado é desempenado com umas correias atadas a um pilar, meia-dúzia de arranques em marcha-atrás e a longarina volta ao lugar, ali não há lugar para medições a paquímetro, tudo a "olhómetro", o farol e o pára-choques encaixam e não há folgas, está arranjado e pronto para a pintura. 

O meu Lybra está pronto mas graças ao Mazda sinto as minhas roupas e cabelos impregnados do cheiro a gasolina queimada e borracha. Posso dizer que tenho finalmente um mecânico de confiança na Polónia!

Hoje fui com o carro fazer o przegląd techniczny ou seja o IPO. Passou. Apenas um escorrimento de óleo incomoda o inspector, diz-me que devia arranjar pois a polícia pode mandar-me parar e colocar um espelho por baixo do motor para ver se há fugas de óleo. Pode ser mas duvido que o façam amiúde em carros particulares.


 Mais um ano de circulação, apesar de tudo, viva l'Italia!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Coisas da guerra...



A evocar os crematórios. Radegast ou Radogoscz foi uma estação de caminhos de ferro que tinha uma linha que acabava em Auschwitz e em outros campos de concentração da "solução final". 

Hesitei antes de colocar este novo post mas afinal viver na Polónia tem destas coisas. Ora num dia estamos em pleno dia de Finados ora noutro damos por nós em locais históricos relacionados com o conflito de 1939-1945.

O dia estava solarengo e a convidar a um passeio, apesar do vento gélido que soprava. Peguei no carro e fui ter com o Rui, demorando apenas dez minutos a chegar  à larga e movimentada avenida onde ele mora. O motivo da visita desta vez prendia-se com um mecânico que ele me recomendou e que fica mesmo ao lado da casa dele.

Conduzir na Polónia implica habituarmos-nos a estradas de asfalto irregular, a uns buracos de vez em quando, umas "lacadas", umas tampas de saneamento que parecem cápsulas de garrafas a saírem da estrada e, volta e meia, um pneu furado e substituição regular dos casquilhos de suspensão - aprendemos rapidamente a palavra wahacze (braço de suspensão) e uszkodzone (estragado).

A visita à oficina quase merecia um outro post mas tendo em conta que a reparação vai custar caro e neste momento é totalmente inconveniente para a situação financeira da família, prefiro nem mencionar mais nada...

Como o assunto foi tratado com celeridade e não havia muito mais a fazer senão combinar o dia e saber o preço do material e mão-de-obra acabei por ir com o Rui na spacer (palavra polaca que significa ir passear).
Moramos na zona de Radogoszcz em Bałuty, trata-se de uma imensa freguesia dentro da cidade de Łódź que, a bem dizer, são sobretudo zonas-dormitório e floresta, mais do que outra coisa qualquer.

A pouco mais de 300 ou 400 metros da casa do Rui fica a estação de caminhos de ferro de "Radagast", o nome dado pelos Nazis durante a ocupação de Litzmannstad (Łódź).





No pequeno museu da estação de Radegast podemos consultar as listas com os nomes dos deportados. Tudo está perfeitamente bem conservado, dactilografado em alemão em folhas A4 e organizado em cadernos. Os que foram levados para a morte têm um visto escrito a lápis ao lado do apelido. 

Radegast foi palco do início da tragédia de milhares de famílias judaico-polacas. Łódź foi até ao final do conflito a cidade polaca com maior comunidade de judeus mas bastaram pouco menos de cinco anos para que isso mudasse radicalmente. Os grandes campos de concentração, ou de extermínio, ficavam a Sul de Łódź, perto de Cracóvia e Częstochowa e são tristemente célebres pelo seu nome de ocupação: Auschwitz-Berkinau (Oswięcim) e Treblinka (Brzezinka).

Em Łódź o gueto judaico foi isolado pelas tropas do III Reich e totalmente aniquilado ao longo da década de 40. Gradualmente os judeus-polacos foram separados e levados de comboio em vagões de gado, sem condições nenhumas, empilhados e sofrendo horrores que nem vale a pena escalpelizar. O processo de deportação da comunidade judaica e "limpeza" da cidade dessa minoria étnica chamava-se de Judenrein.



Este museu e os monumentos simbolizando o destino final e as mãos - a lembrarem-me as mãos que batiam nas portas das câmaras de gás, quando libertavam o Zyklon B - foi palco de alguma celeuma pelo seu custo elevado numa cidade que precisa manifestamente de obras. Polémicas à parte ninguém fica indiferente à simbologia presente neste local que foi inaugurado por o Presidente Kaczyński

O gueto, construído rapidamente pelos Nazis, era no fundo um conglomerado industrial, alimentado pelas centenas de manufacturas e fábricas dos judeus-polacos, os detentores de grande parte do capital e grandes empreendedores da altura. Na nossa História de Portugal também não nos livramos das "judiarias", ou seja, do saque e violência contra os judeus sempre que o Rei precisava de "ouro". Assim o fizeram os Nazis com grande parte das riquezas da comunidade hebraica e bens que se encontravam no gueto, incluindo obviamente a mão-de-obra dos residentes.

Hoje em dia a estação de Radegast é um memorial dos mais de 230.000 judeus de Łódź que foram desalojados da cidade, a maioria deles não sobreviveu a guerra e passaram por aquela estação de comboios. Calcorrear aquele chão em pedra, aquela plataforma, ver a locomotiva a vapor com frases em alemão e dois vagões de gado, onde podemos entrar, é como viver um filme, sentir por um momento a inenarrável crueldade do ser humano para com o seu semelhante. Ocorre-nos no pensamento a pergunta - mas porquê? Como foi possível tanta crueldade? Foi possível.



Foto tirada com o telemóvel a um dos vagões de transporte. Os olhais para fixar as cordas aos animais e as pequenas janelas com arame farpado. Depois da guerra os comunistas iriam usar sistema semelhante com a diferença de levarem as vitimas para a Sibéria (opositores ao regime, intelectuais) abrindo as portas e deixando-as morrer de frio. 



Tirou-se uma foto dentro do vagão. Os nossos rostos dizem tudo. 



Uma das locomotivas que levavam as composições. Fiquei na dúvida se teria esta cor nos anos 40. 

 

Vista de Radegast a partir do miradouro construído de propósito há pouco tempo  

domingo, 1 de novembro de 2009

Coisas de cemitérios

Quando nascemos em países cuja religião predominante é o catolicismo não podemos evitar que certas tradições da Igreja nos passem ao lado, como se diz em inglês you can run but you can't hide*, e no fundo são tradições que nos fazem sair um pouco do frenesim, banalidades, rotina e preocupações diárias para recordar aqueles que já não se encontram entre nós e nos fazem falta.

Tal como escrevi há um ano atrás este dia de Finados é vivido com grande frenesim em toda a Polónia especialmente junto aos cemitérios - na sua maior parte verdadeiras necrópoles - podemos ver uma autêntica maré humana com o preto como cor predominante. Junto aos muros estão as bancas dos vendedores de flores e de velas mas também os que vendem balões, pipocas, algodão doce, kiełbasa e afins.

Só na passada sexta-feira morreram nas estradas da Polónia mais de 20 pessoas em acidentes de viação, uma prova do movimento que este feriado religioso gera.  Em Portugal, apesar da grande agitação nos cemitérios, nunca vi nada que se comparasse a isto que observo na Polónia; são dias em que a polícia tem especial trabalho em ordenar o trânsito e manter a ordem pública. Se por um lado grande parte dos polacos se desloca de automóvel por outro o transporte público é ainda o meio privilegiado de se alcançarem os cemitérios. Nestes dias organizam-se inclusivamente linhas especiais e fecham-se ou abrem-se determinadas artérias para que o tráfego flua e os autocarros circulem mais rapidamente e sem atrasos.

Já é o quinto Dia de Todos os Santos que passo na Polónia, em todos eles o sol brilhou mas faz frio, aquele frio que nos faz arrefecer rapidamente o rosto e as mãos, um frio que me recorda outros finados, passados em Portugal, as idas a Amarante para por umas velas na campa da avó Rosalina - a mãe do meu pai - e visitar a campa de um bisavô que havia nascido no século XIX e tinha uns grandes bigodes farfalhudos.



O cemitério "Cmentarz Komunalny "Szczecińska"‎ tem aproximadamente um quilómetro de uma ponta a outra, não só é fácil perdermos-nos lá dentro como também não encontrarmos determinadas campas.



Leio os seus poemas e trechos de alguns dos seus livros, infelizmente não entendo grande parte do que escreveu mas são as palavras dele que ecoam na minha mente, ler algo que o meu sogro escreveu é em parte ouvir-lhe a voz e o pensamento.  Um sogro que nunca conheci, um avo que não conheceu os seus netos, como o outro avo que está noutro cemitério, a 3500 quilómetros deste. 

 O cemitério onde está enterrado o meu sogro Mieczesław Kucner - que nunca conheci pois morreu em 1992 - fica a cerca de três quilómetros de casa, trata-se de uma gigantesca necrópole na qual podemos sem grandes problemas fazer um ou dois quilómetros a pé, dentro do cemitério.
Das vezes que lá fui foram-me contando histórias de algumas das campas, numa está enterrado um serial killer que nos anos 80 violou e matou algumas raparigas de Łódź, a sua fotografia está com os olhos furados e riscada, noutro a campa de um jovem que morreu na passagem de ano em consequência de uma briga estúpida entre adolescentes bêbados e também vou lendo centenas de apelidos polacos, alguns inevitavelmente fazem-nos sorrir, como a campa da família Puta, ou da família Śmietana (creme).



 A campa de Paweł Ogaza fica ao lado da campa do meu sogro e deixa-me sempre triste. Não só partiu cedo desta vida como nem na morte se lembram dele. As flores são plásticas e as velas que vão sendo colocadas à sua memória são oferecidas por anónimos. Paweł morreu esfaqueado na passagem de ano de 1992 para 1993, uma agressão escusada tirou-lhe a vida aos 15 anos. Quando passarem 20 anos sobre a sua morte (Janeiro de 2013) e tendo em conta que ninguém da família mantém o local, a campa vai ser utilizada para outro defunto, Paweł Ogaza desaparecerá completamente. Coisas de cemitérios...





* Podes correr mas não podes esconder-te